Por Lejeune Mirhan
Já estava mais do que na hora tecermos alguns comentários sobre o que vem acontecendo na República Árabe Síria, onde presenciamos as primeiras manifestações de rua contra o presidente, Dr. Bashar El Assad. Publicamos agora esses primeiros comentários.
Não tenho pretensões aqui em contar a história da Síria. No entanto, um breve resumo se faz necessário. Esse é um país milenar. A cidade de Damasco, sua capital indivisível, tem mais de cinco mil anos de existência contínua. Disputa com a cidade palestina de Jericó, o aglomerado urbano mais antigo de vida continuada. Tem raízes no cristianismo muito forte. Lá um dos apóstolos de Jesus teria tido uma visão e se converteu a essa religião.
Os atuais sírios, descendem dos antigos arameus e assírios (meus antepassados são assírios da região noroeste do país). Na antiguidade clássica, essa região foi ocupada pelos Persas, de Alexandre e posteriormente virou província do Império Romano. Em 660, sob o califado omíada, a Síria é ocupada pelo império árabe e islâmico. Os cruzados cristãos europeus passam por lá por breve período tempo e organizam algumas fortalezas e constituem algumas cidades. Os turcos otomanos tomam o país em 1516, lá ficando até o fim do Império em 1918. Sua independência vem da tentativa de 1936 e depois de 1944, sendo só reconhecida em 17 de abril de 1946, considerada a data nacional mais importante do país.
Interessante registrar a forte influência que a antiga URSS teve sobre esse país, que no passado mais recente tinha o nome de República Socialista Árabe Síria. A palavra “socialista” caiu do nome do país, mas o slogan oficial do país continua sendo “unidade, liberdade, socialismo”. A França foi a potência europeia que colonizou o país, hoje com cerca de 20 milhões de habitantes.
Onda de protestos atinge o país
As ruas sírias, como as ruas árabes em geral, também clamam por mudanças. Mas, a situação desse país e do governo do presidente Dr. Bashar Al Assad tem particularidades que as distingue de outros países árabes do Oriente Médio. Aqui não se trata de defender o governo. Sabemos bem do tempo que Bashar encontra-se no poder – 11 anos! – e que suas sucessivas reeleições atingem elevadíssimos percentuais, sendo praticamente simbólicas e homologatórias. A Síria é regime de Partido único, no caso o Partido Socialista Árabe Sírio – Baath. Governam esse país desde 1963. O pai de Bashar ficou no poder de 1970 até a sua morte em 2000, quando o filho o sucedeu.
Não estou entre os que endeusam a democracia, concedendo-lhe valores universais. Cada país deve saber como encaminhar a sua democracia, a sua forma de escolha de seus governantes. Pregar hoje de forma indistinta a “derrubada de todos os ditadores” e colocar no mesmo saco o governo da Síria, de meu ponto de vista, é fazer completamente o jogo do imperialismo estadunidense.
Aliás, é bom que se registre, em uma mesma região – o Oriente Médio árabe – temos três posições completamente distintas. Na ampla maioria dos casos, trata-se de pedir mesmo a derrubada de todos os governantes monarquistas reacionários e pseudos presidentes “republicanos”. Há uma segunda posição, sobre a Líbia que não é de apoio nem a Kadafi nem aos tais “rebeldes” pró-americanos. E a terceira, é esta sobre a Síria, em defesa do governo.
O que dá o caráter de um estado, se ele é mais ou menos progressista, avançado, é o seu compromisso, sua plataforma de ação, as suas alianças internas – inclusive de classes sociais – para ver contra quem e a favor de quem age a sua estrutura governamental. Poderíamos citar aqui dezenas de governantes nos últimos dois séculos que não receberam voto nenhum de seus povos, mas foram extremamente populares. Nasser foi um deles. Nunca recebeu voto algum no tempo que governou o Egito, entre 1954 e 1970 quando morreu (ou foi morto, não se sabe ao certo). Mas, no seu enterro, pelo menos um milhão de pessoas estiveram presentes (seria hoje coisa equivalente a três milhões de pessoas, o triplo da maior manifestação reunida na Praça da Liberdade no Cairo).
Sírios comemoram o Dia da Independência, 17 de abril, com uma visita à fronteira das colinas de Golã, capturadas por Israel na Guerra dos Seis Dias, em 1967
Conheço de perto – como estudioso do mundo árabe – e muito bem, os compromissos do governo da Síria. Tem conteúdo e caráter antiimperialista nítido, bastante claro. Não conheço governo árabe nenhum em todo o OM, que dê guarida para qualquer grupo revolucionário que lute pela libertação de seus povos, como o sírio, do Partido Baath. Por fim, desconheço qual país árabe tenha dado tanta ajuda ao povo palestino e à sua luta pela libertação do jugo israelense quanto a Síria.
A Síria e seu governo têm inimigos antigos e poderosos no OM e no mundo. Entre eles estão os Estados Unidos, o Iraque (ocupado) e governado por uma maioria xiita, a Arábia Saudita, Israel e o atual e renunciante governo do Líbano, nas mãos ainda do demissionário Said Hariri, pró-EUA e amigo de Israel. Nesse sentido, é bastante possível e até provável que por trás dos que lideram protestos em algumas cidades sírias, podem estar o longo braço das agências e serviços secretos tanto de Israel quanto dos EUA.
Entendo como justas as reivindicações por reformas políticas. E tenho a convicção de que elas virão. Nunca nos esqueçamos que, tecnicamente falando, a Síria esta em guerra contra Israel desde 5 de junho de 1967, na chamada Guerra dos Seis Dias, quando os judeus tomaram-lhe as estratégicas colinas de Golãn.
A Síria forma hoje com o Irã e a Turquia, uma poderosa aliança que apoia a luta pela libertação da Palestina (com o Hamas e o Fatah) e a Independência do Líbano (com o Hezbolláh). A quem interessa quebrar essa unidade política e revolucionária? Independente de suas confissões religiosas, se cristãos, muçulmanos (xiitas e sunitas, bem como alawitas que governam a Síria), bem como comunistas e outras correntes, estão unidos tanto na Síria quanto no Líbano. Esperemos que tais forças e partidos coligados, possam se unir também no conjunto dos outros países árabes para levar adiante e até o fim, a derrota dos governos reacionários de direita aliados dos Estados Unidos e de Israel e anti-árabes.
A eventual queda do atual governo sírio e a entrada de Damasco no campo ocidental será uma imensa e significativa vitória estadunidense e imperialista. Praticamente enterra a revolução e a primavera árabe. Na verdade, podemos dizer que esse projeto já é parte de um plano de uma contra-revolução em curso que possui algumas características que vem sendo observadas na prática: 1. A invasão do Bahrein pela Arábia Saudita, com apoio americano para proteger a sede da 5ª Frota e o massacre do povo bareinita; 2. A intervenção imperial direta na Líbia para instaurar um governo aliado e subserviente aos EUA; 3. A tentativa de manipulação e o controle da revolução no Egito e na Tunísia; 4. A corrupção na revolução do Iêmen; correm tentativas de trocar o ditador Ali Saleh, há 32 anos no poder, por algum amigo dos EUA.
Não tem grau de comparação entre a importância estratégica que tem a Líbia e a Síria no cenário do OM. Derrubar hoje Kadafi e colocar um aliado americano na líbia quase nada mudaria na região. A Líbia já era aliada americana e da Europa desde 2002. Derrubar o governo sírio poderá sim significar um profundo retrocesso nas lutas de libertação e emancipacionistas árabes.
Nunca nos esqueçamos que nosso inimigo principal continua sendo os Estados Unidos e sua política unilateral de controle de todo o mundo. Quebrar a sua hegemonia – tarefa essa em curso exatamente com a força da Revolução Árabe – deve ser parte de todos os democratas, patriotas, nacionalistas, socialistas, comunistas e religiosos daquele mundo e de todos os países.
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Sociólogo, Professor, Escritor e Arabista. Membro da Academia de Altos Estudos Ibero-Árabe de Lisboa e Diretor do Instituto Jerusalém do Brasil. Colunista de Oriente Médio do Portal da Fundação Maurício Grabois – FMG. Colaborador da Revista Sociologia da Editora Escala. E-mail: lejeunemgxc@uol.com.br