Saturday, October 29, 2005

Herzog, memória subversiva

São 30 anos do assassinato do jornalista Vladimir Herzog pela ditadura militar. A foto é nítida em minha memória: a cabeça pendente, o pescoço asfixiado, o corpo derramado rente à parede. E eles supunham que tinham todo o poder. Poder sobre a vida dele e sobre a nossa memória, essa obcecada ilusão que produz no poder uma cegueira onipotente, tão bem descrita por Primo Levi.

Herzog, convocado a prestar declarações em outubro de 1975, numa dependência militar de São Paulo, qualificada por seus algozes de “sucursal do inferno” (o mesmo centro de tortura do qual frei Tito de Alencar Lima entrou lúcido, em 1970, e saiu tomado pela loucura, que o levou à morte quatro anos depois), não tinha as respostas que eles queriam.

Eis o que mais irrita o torturador, induzindo sua mente mórbida a produzir a adrenalina da crueldade: o interrogado não ter as respostas que ele espera escutar. Então a sevícia produz a dor e a dor a ruptura que torna o corpo inimigo do espírito. O réu é convocado a testemunhar o próprio opróbrio, o que Tomás de Aquino considera maior crime que o homicídio.

Herzog seria mais uma entre tantas vítimas suicidadas no calabouço da ditadura. Prova disso é que sua morte não inibiu os assassinos. Pouco depois, no mesmo centro de tortura da rua Tutóia, morreria Manoel Fiel Filho. Todo poder detém o monopólio da violência. Mas quando não há nenhum outro poder que lhe imponha limites, como ocorre nas ditaduras, a violência extravasa do corpo de lei para o capricho necrófilo do algoz. As regras do Direito são subvertidas pela impunidade que protege a ação direta de quem age em nome do Estado.